sábado, 23 de julho de 2011

Estilhaços (Parte IX - final)

Esperou minuto a minuto, até que estes se tornaram horas num passar lento que o descriminava, pois sentia-lhe o dobro do que era. Mas ninguém apareceu. Todavia, a Voz que lhe murmurava ao ouvido, dia após dia, e a quem nunca contara da sua existência, permanecia com ele, sussurrando-lhe ameaças, desejando amedrontá-lo com os males que poderiam ser causados aos que lhe eram queridos, se não saísse de imediato do solar abandonado aos ratos e às aranhas que dele tinham feito o seu próprio palacete. Porém agora não havia voz que lhe incutisse mais medo do que aquele que lhe palpitava nas veias. Se durante tantos anos a Voz o quis impedir de que fosse até ali, deveria existir uma razão importante. Talvez ela própria temesse o que um velho louco poderia fazer, porque o tom aumentava dentro da sua cabeça, um aviso que elevava cada vez mais a voz, desejando roubar-lhe a sanidade.

- Cala-te, não te quero ouvir… - rosnou e, por puro impulso, a espingarda disparou-se ao acaso. A bala atravessou a janela e perdeu-se na noite, o seu voo fazendo companhia aos morcegos e aos mochos.

O estouro sobrepôs-se por um momento aos gritos que lhe vibravam nos ouvidos, no entanto foi um instante fugaz.

- Onde estás? – Exigiu saber, avançando até ao toucador que apresentava uma camada de pó espessa. Contudo, ali estavam os estilhaços, sete ao todo. Mas deveriam ser mais, não deveriam? Âmbar quebrara um deles em pedaços mais pequenos, lembrava-se como se tivesse sido naquele mesmo minuto. Parecia que esses pedaços se tinham reconstituído e voltado a ser um estilhaço uno. Para além disso, não existia um único grão de pó a macular a superfície reflexiva. Talvez houvesse quem os limpasse constantemente, e no entanto pareciam intocados. Não havia marcas de dedos, confirmou com a luz da lanterna. Ali, o pó desaparecia, tal como Âmbar desaparecera. Talvez…

A mão esticou-se para os estilhaços e parou a poucos milímetros deles, hesitando. Se lhes tocasse, era provável que também ele desaparecesse. Mas não era aquela a única forma de saber o que acontecera à irmã? Não desejava levar aquela dúvida para o caixão, no entanto um gesto assim poderia ser puro suicídio.

“Afasta-te, idiota!”, quase guinchou a Voz dentro dos seus ouvidos, fazendo-o estremecer. “Volta para o calor da tua lareira, desaparece daqui!”

Apesar do aviso que as ordens poderiam conter, estas serviram apenas como incitação. Se a Voz não queria, ele deveria fazê-lo com ousadia e desafio. Sem esperar, a mão pousou sobre os sete estilhaços de espelho e Jun desapareceu. Mas deixou rasto.

No exterior do solar, entre as ervas daninhas que minavam os canteiros que outrora teriam bonitas flores, despontaram sete ramos de alecrim que agraciaram a noite com o perfume tão característico. Junto deles ajoelhara-se uma jovem mulher. Pelo menos no seu rosto não havia uma única ruga que o maculasse. No entanto as mãos trémulas, que ela estendeu para as plantas, banhavam-se na velhice. Se a visse, Jun não a identificaria como sendo a bruxa que vira muitos anos atrás, transportando um cadáver ensacado. Esta também transportava um, que abandonara para poder contemplar as flores, de olhos inundados em lágrimas.

- Avisei-te para que não viesses, persegui-te os sonhos e o consciente – soluçou, quase se engasgando com as palavras. – Mas tocaste-lhe, e aquele maldito espelho estilhaçou-te a alma em sete partes para… para… melhor as devorar. Porque não só um estilhaço? – Afagou cada planta, ludibriando-se com a ideia de que ele poderia sentir o carinho que transmitia. – Só toquei num deles e fui feita escrava do desejo por cadáveres de que ele sofre.

O vento soprou e com ele o canto de uma coruja encheu a noite, provindo de uma árvore não muito distante. Os ramos de alecrim dançaram com aquele balanço, lembrando o quão efémeros eram.

- Quis-te são e salvo, longe do perigo, como um dia… como um dia… também me quiseste – confessou, não se importando que as criaturas da noite a escutassem. Seria castigada quando o Ser do Espelho soubesse o que fizera durante tantos anos. – E como nesse dia não te quis ouvir, também tu não me quiseste ouvir hoje, meu irmão.

As lágrimas não cessaram. A mulher que outrora se chamara Âmbar não colheu os alecrins, deixando-os ali para que representassem o nome que um dia fora dado ao Outeiro. Despediu-se uma última vez, pedindo perdão. No final, a culpa fora sua. Todo o desgosto, todo o sofrimento que causara... e acabara assim.

Por fim, subiu até ao quarto, não se importando com o morto ensacado que deixara no jardim e que fora roubado de uma igreja onde esperava ser enterrado. Parou perto do espelho e debruçou-se, incapaz de ver o próprio reflexo. Mas também não o desejava. Estendeu a mão e imitou o irmão, sendo também levada pelo desconhecido que lhe devorou as restantes partes da alma desgastada pelos anos de servidão.

No jardim despontaram outros seis raminhos de alecrim. O sétimo já há muito fora colhido.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VIII)

- Agora é hora de se irem deitar.

Quando as aconchegou na cama, ofereceu um beijo na fronte de cada uma, antes de apagar a luz fraca do candeeiro da única mesa-de-cabeceira presente no quarto. Depois disso, dirigiu-se para os próprios aposentos, rodando a chave e certificando-se que a janela estava bem fechada. Fazia-o sempre, desde aquilo que lhe acontecera em criança, não fosse a bruxa do saco subir até ali. Aproximou-se com passos hesitantes de uma estante não muito alta, onde guardava alguns dos seus livros favoritos. Escolheu um, de entre todos, de capa já antiga. O título, Viagem ao Centro da Terra, facilmente fazia prever que o escritor era Júlio Verne. Encostou-o ao peito e dirigiu-se até à cama, cujo o velho colchão chiou de queixume quando se sentou sobre ele. Ficou naquela posição durante longos segundos, como quem tenta angariar a pouca coragem que perfaz os recantos mais obscuros do espírito.

Por fim, apartou-o de si e abriu-o com cuidado, sem precisar de procurar uma página em particular, pois as folhas de imediato revelaram o que procurava. Os folíolos secos e as pétalas murchas que tinham já perdido um pouco da cor observavam-no, sem olhos.

- Âmbar, prometi-te que um dia tentaria descobrir o que te aconteceu. E, depois de ter contado a tua história às miúdas, sinto que esse dia chegou.

Tirou o ramo de alecrim do interior do livro e colocou-o no bolso do casaco de lã. Esperou mais um hora ou duas, até toda a casa cair em silêncio, e só aí se ergueu da cama. Desceu até à cave onde guardava a espingarda, entre outras coisas, e carregou-a com as balas que escondia dentro de uma caixa fechada a cadeado para os netos não brincarem com o que não deviam. Sabia por experiência própria que a curiosidade dos pequenos por vezes é catastrófica.

Pouco depois saiu de casa, de lanterna na mão, e encaminhou-se para o Outeiro dos Alecrins, ao mesmo tempo que se protegia da brisa fria. Por aqueles lados não existia qualquer candeeiro eléctrico, era um local desabitado que nunca tivera tal privilégio e fora abandonado à escuridão.

A luz varreu mais do que uma vez o interior do edifício, quando o velho Jun voltou a entrar nele ao fim de tantos anos. Nada se moveu. O silêncio que habitava o solar revelava-se mais grave que o do exterior. Mais pesado, tal como se lembrava dele. Não se deteve então naquele piso, dirigindo-se para o superior com passos lentos e pensados. Já não era nenhuma criança e pesava uns bons quilos a mais do que quando tivera oito anos, e por isso não desejava que toda a antiguidade e podridão da casa ruísse.

Apesar do medo que lhe palpitava no peito, Jun deixou a audácia tomar palavra e entrou no quarto onde Âmbar desaparecera. Como da primeira vez encontrava-se vazio, porém demasiado quieto. Os braços das cortinas não se moviam como os vira outrora fazer, o que em muito contrariava o vento da noite.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VII)

"Jun observou a pequena oferenda, com um misto de incredibilidade e aquele mesmo terror que não se esvaneceria. Ela dissera que aquilo era a sua irmã? Aquele frágil pedaço de planta? Mentiras… mentiras e mais mentiras de uma adulta má que também o queria meter dentro do saco, e talvez matá-lo, dando-lhe com uma pedra na cabeça. Recuou para fora do aposento, tropeçando em algo que aparentemente não ali estava e caindo para trás desamparado. Uma das mãos esfolou-se na madeira áspera, recebendo duas farpas, mas a dor foi relegada para segundo plano.

- O que foi, pequenino intrometido? – Perguntou, simulando um tom infantil. – Estamos só a fazer uma troca. Leva-a como recordação, antes que decida comer-te. – Atirou-lhe o ramo para cima. A reacção dele foi imediata, saltando para o lado como se o toque daquela coisa passasse peçonha. Apesar de ele nunca ter percebido o que realmente poderia ser a peçonha. Mas era algo mau que revestia a superfície de muitos animais e plantas, segundo a mãe e a avó.

- És uma bruxa… - sussurrou num gemido aflito, recuando em direcção às escadas, antes de descer por elas. Caiu os últimos degraus, esfolando-se ainda mais. Os olhos cheios de lágrimas procuraram a porta fechada e aquele entrave só aumentou a maré de pânico que parecia subir e inundá-lo.

Uma súbita gargalhada malévola fez estremecer o que restava nos vidros, em modo de ameaça, e a criança não se demorou a abrir a porta, escapando-se para o exterior soalheiro. Precipitou-se pelo caminho, derrapando nele, e chegou à aldeia tão depressa como nunca antes. Mas ainda assim pareceu-lhe ter levado uma eternidade a alcançar a segurança. Quando passou a porta de casa e teve coragem para contar tudo o que acontecera, ninguém quis crer na sua história. Porém, logo a noite cobriu a aldeia sem Âmbar regressar a casa. Não apareceu nesse dia, nem em nenhum.

Quando o rapazinho se fechou no quarto para chorar livremente, um ramo de alecrim pereceu imóvel junto ao soalho atapetado. Viajara consigo durante toda a corrida, possivelmente preso à roupa, sem que ele se apercebesse de como lá fora ter. Tinha a certeza que fugira dele quando a mulher de mãos mirradas o atirara. Com cuidado, apanhou-o do chão, relembrando as palavras que ela lhe dissera. E se fosse mesmo a irmã transformada em planta? Nunca veio a saber, mas guardou-o como recordação e como esperança, não obstante os pesadelos que fomentaria na sua mente.

Daí em diante, aos olhos dos aldeões, Jun tornou-se um rapaz perturbado, que criara toda uma história para fantasiar o rapto da irmã. Mas só ele sabia a verdade. Só ele. E agora é somente um velho que conta histórias aos netos.”

O silêncio vagueou pela sala, enquanto as labaredas dançavam na lareira emitindo estranhas sombras que varriam o redor.

- É verdade, avô Jun? Isso aconteceu mesmo? – Perguntou uma pequena de olhos grandes e cor de safira, num sussurro.

- Quem sabe? – O avô sorriu-lhe de forma amável, passando-lhe as mãos pelo cabelo.

(...)

sábado, 2 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VI)

“Estremeceu, rodando a cabeça aos poucos e erguendo os olhos aterrorizados para a nova presença. Cruzou-os com dois orbes intensamente verdes que o miravam com alguma curiosidade. Não era um fantasma, era uma presença até bastante sólida, como aquele encontrão poderia testemunhar.

- O que fazes aqui, pequeno? – Perguntou, arregalando duas sobrancelhas finas. – Isto não é lugar para criancinhas. Devias…

A jovem, porque era claramente uma mulher com pouco mais de vinte e cinco anos, notou a diferença que havia no quarto: os sete novos estilhaços, os resquícios que tinham marcado a ousadia da sua irmã. Passou por ele, arrastando atrás de si um saco enorme que lhe lembrava aqueles onde a mãe punha o lixo, e o que transportava no interior ostentava uma forma peculiar. Familiar. Jun observou-lhe o cabelo negro entrançado, que lhe caía até ao nível da cintura. Por entre os fios de cabelo despontavam ramos de alecrim florido que lhe emprestavam uma aura leve. O perfume que deixara atrás de si porém não era de alecrim. Pairava em si um fedor a podridão.

Viu-a acocorar-se junto aos pedaços de espelho e tocar-lhes com várias unhas compridas e pontiagudas. As mãos reflectiam uma velhice que não estava inscrita no rosto bonito, encarquilhadas pelo tempo. Enquanto isso, abandonara o saco ao seu lado e, quando o fizera, um pé descalço de tom escurecido revelou-se.

- Não estavas aqui sozinho, pois não? – Quis saber, sem o olhar, enquanto reunia cada um dos vidros com ambas as mãos em concha e os levava para cima do toucador. Não escutou resposta, porque Jun sentia que a língua lhe fora roubada. Por um momento pensara que aquilo era um membro da irmã, mas não, Âmbar era bastante mais pequena. Mas o que via não deixava de ser o que revelava ser: um cadáver real.

A mulher mirou-o de soslaio, examinando-o e percebendo facilmente aquele terror mudo. Sorriu. Todavia o trejeito no rosto não era amável. Um dos cantos dos lábios erguia-se, escarnecendo da criança. Endireitou-se e ajeitou as saias do vestido comprido.

- Sabes, é feio entrar na casa dos outros sem ser convidado. Chama-se invasão de propriedade privada. E quem o faz pode ser preso – declarou, levando uma mão ao cabelo e retirando um ramo de alecrim dele, estendendo-o na sua direcção. – Toma a tua irmã.”

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Estilhaços (Parte V)

“Curiosa, a rapariga estendeu a mão para um dos pedaços de vidro, mas ele agarrou-lhe o braço de súbito, impedindo-a de maior proximidade.

- Ainda te podes cortar – advertiu, como um pequeno adulto que vela pela filha, e ainda com a imagem de um espectro assassinado, de cujo peito floria algo afiado.

- Sim, mãe, claro que posso – ironizou, livrando-se do aperto dele com uma sacudidela brusca. – Pára de ser assim. Só me corto se não tiver cuidado, e eu tenho cuidado, não sou nenhuma bebé como tu.

Jun encolheu-se um pouco, sentindo aquelas palavras como ofensas. Ela que fizesse o que lhe apetecesse, porque ele ia para casa. Estava cansado daquela brincadeira, cansado de ser considerado medricas… e cansado de ter medo e de sentir a respiração presa pela ansiedade. Voltou-lhe as costas sem mais nenhuma palavra, esperando que a irmã apanhasse um bom susto antes de regressar para casa a correr.

Dera dois passos quando a ouviu remexer nos estilhaços de vidro. E avançara somente mais um, quando um gritinho lhe chegou aos ouvidos e o pedaço de espelho caiu ao chão com espalhafato, partindo-se ainda mais. Olhou para trás, abrindo a boca com intenções de lhe dizer “eu avisei-te!”, mas a boca manteve-se aberta sem que nada fugisse do interior. Âmbar já não estava junto ao toucador poeirento. Não estava em lado nenhum.

- Ma… mana? – Chamou, olhando em volta, como se ela pudesse ter-se escondido durante aquela fracção de tempo. A única resposta que obteve foi o contínuo esvoaçar das cortinas rasgadas. – Âmbar, onde estás? Isto não tem piada nenhuma.

Abeirou-se do guarda-fatos, abrindo-o vacilante, quase esperando que ela saísse lá de dentro com um salto, para o assustar. Mas estava vazio. Depois espreitou debaixo da cama, como se fosse possível a irmã ter-se escondido lá, o que não era, já que para isso ela teria de passar por si. Constatado o óbvio, lágrimas de medo despontaram nos olhos de Jun, que recuou em direcção à porta do quarto, não permitindo que a atenção se desviasse de todos os ínfimos pormenores em redor. Porém, quando deveria passar a fronteira para o corredor, as costas chocaram com um bloqueio inesperado.”

domingo, 26 de junho de 2011

Estilhaços (Parte IV)

“Encostaram-se à parede suja, adjacente à primeira porta entreaberta do corredor.

- Aos três, empurramos a porta para trás… - avisou Âmbar, relanceando o irmão por um segundo. – Um, dois… três!

Com um golpe de pé, a rapariga abriu a porta que bateu contra algo. Um súbito guincho estridente recebeu-os e, como resposta, eles gritaram em uníssono para, instantes depois, verem uma ratazana saltar do interior do aposento e precipitar-se para longe dali a toda a velocidade, tão assustada ou mais que eles. Fecharam a boca, e preferiram não comentar o sucedido, de rostos enrubescidos pela vergonha do engano. Não tinham surpreendido qualquer alma penada que tivesse morrido ali e cujo cadáver pudesse ter sido escondido num guarda-fatos…

Entraram, mirando o espaço com atenção. As cortinas retalhadas das duas janelas lembravam a Jun braços inertes que algum assassino psicopata se dera ao trabalho de pendurar como um enfeite de requinte. Também lhe lembrava que não deveria ver filmes de terror às escondidas, quando o deixavam sozinho em casa. A brisa provinda do exterior agitou aqueles membros, conferindo-lhes um pouco de vida. E se tivessem a capacidade de se esticar e procurar-lhes os pescoços?

- É um quarto – constatou Âmbar, aproximando-se da cama e espetando a espada no colchão deteriorado, enquanto o rapaz passava uma mão pelo pescoço ao pensar no que seria a realidade do que imaginava. – E tem um guarda-fatos!

Correu para lá, enquanto o irmão tentava esquecer as suas ideias, desviando o olhar das cortinas e deparando-se com os restantes pormenores. Não era um espaço muito grande, mas outrora estivera bem mobilado. Aproximou-se de um toucador coberto de pó, atentando no espelho de parede partido cujos estilhaços cobriam a sua superfície. Não os contou de propósito, mas ao fazê-lo percebeu que eram sete.

- Um bocado para cada ano de azar – sussurrou para si, ganhando pele de galinha. Âmbar olhou para trás ao escutá-lo. Entretanto já abrira o armário e confirmara a inexistência de um morto.

- O que estás para aí a magicar? – Perguntou, espreitando por cima do ombro dele, em bicos de pés. Apesar de ser mais velha não era mais alta – Uuuh! Um espelho partido! Pode ser a nossa resposta. O fantasma pode tê-lo quebrado quando estava vivo, e até pode ter morrido com algum pedaço mais cortante.

Jun abanou a cabeça, como se quisesse tirar as palavras da irmã de dentro dos ouvidos. Ela fizera questão de lhe pôr mais imagens sangrentas no cérebro. Quando voltasse a casa e fosse dormir, iria molhar o colchão, era certo.”

sábado, 25 de junho de 2011

Estilhaços (Parte III)

“Pegou na mão livre da irmã e arrastou-a dali para fora. Voltou a cabeça para trás somente uma vez, e isso só o fez acelerar o passo, ao deparar-se com dois olhos amarelos de pupilas fendidas que os espreitavam. Dois olhos sem corpo.

Quando chegaram à base das escadas, já no hall de entrada, Jun soltou um suspiro de alívio, apesar do sentimento não ser completo. A pontada de medo infiltrara-se como um espinho que se esconde na carne e se aprofunda mais de cada vez que o tentava remover. Âmbar olhou-o de soslaio.

- Já com medo, mariquinhas? – Quis saber, erguendo uma sobrancelha em modo de desdenho. – Ainda mal começámos.

Tocou com a ponta da espada nas escadas, como que testando a sua veracidade, não fosse uma ilusão criada por um espírito matreiro. Mas confirmou a sua compacticidade, antes de dar o primeiro passo. A madeira rangeu em modo de ameaça, o que fez Jun encolher o pescoço entre os ombros. Infelizmente para ele, não era uma tartaruga com carapaça onde se esconder. Mas de que serviria tal casota contra seres do outro mundo?

Seguiu então a irmã, ponderando cada passada e olhando para trás por várias vezes, como quem espera uma perseguição prestes a acontecer. O segundo piso carecia em iluminação, pois não era muita a luz que conseguia rastejar até ali. As janelas que houvesse estariam escondidas dentro dos quartos, a maioria de porta fechada, ou quase.

- Mana, talvez já esteja na hora do lanche, é melhor voltarmos. – Era uma fraca forma de dissuadir Âmbar de prosseguir. – Ou a mãe vai chatear-se connosco…

- Nós acabámos de chegar, não sejas totó.

Continuou, sem esperar por ele, e o rapaz, não querendo ser deixado sozinho, correu três passos rápidos, colando-se aos calcanhares da irmã que empunhava a arma de brincar como se pudesse vir a utilizá-la a qualquer momento.”

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Estilhaços (Parte II)

“De costas baixas e com passos silenciosos, correram até à porta principal, cuja fechadura há muito deixara de funcionar. Abriram-na com cuidado, e espreitaram através de uma fresta para o interior vazio. Após isso, entraram rapidamente e fecharam a porta atrás de si que, ao contrário do que esperavam, não os brindou com o típico chiar arrastado de casa assombrada. Um mero olhar em redor revelava o que os raios de sol iluminavam parcamente: um interior abandonado ao pó, às térmitas e às aranhas que tricotavam nos cantos intrincadas teias.

- Mantém-te atenta, eles podem estar em qualquer lugar – sussurrou Jun, crispando os dedos no punho tosco da espada.

- E podem disfarçar-se de mobília, ou esconder-se nas sombras. – Âmbar lançou um olhar desconfiado a uma cadeira à qual faltava a perna dianteira esquerda e cujo estofo estava roto. – Podem ser qualquer coisa… é melhor começarmos a procurá-los neste andar.

E assim fizeram, vasculhando cada canto sem nada encontrarem. Talvez estivessem prestes a descobrir que os boatos para assustar crianças eram somente isso, assim como já tinham descoberto que nem o Pai Natal nem o Coelho da Páscoa existiam. E com todas essas descobertas, sabiam também que os adultos eram uns grandes mentirosos.

Deixaram a cozinha como último compartimento a investigar e, mal lá chegaram, lançaram olhares de receio a uma passagem escura de porta escancarada. Aproximaram-se só o suficiente para mirar as escadas que desciam e se perdiam no que estava oculto à visão.

- É… é melhor deixarmos a cave para um dia em que trouxermos os primos – ponderou o irmão, claramente com medo de se infiltrar na escuridão. O rosto de Âmbar revelava toda a sua concordância. Ambos os irmãos tinham uma inconfessada fobia ao escuro. Qualquer coisa poderia habitar aquele espaço, talvez uma criatura de garras afiadas que esperaria paciente por criancinhas aventureiras. – Vamos para o piso de cima!”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Estilhaços (Parte I)

“Há muito tempo atrás, no Outeiro dos Alecrins, foi construído um solar que se diz assombrado. É avistado da maioria das casas da aldeia como um monumento deixado às ervas e, apesar do nome, ninguém testemunha que algum dia tenham existido alecrins nos terrenos em redor da moradia.

Mas esquecendo-nos do Outeiro, Âmbar é o nome de uma jovem que há muito foi dada como desaparecida, talvez tenham já passado setenta anos. Diz-se nas vozes do povo que foi levada num carro negro por um senhor e uma senhora, também eles de trajes fúnebres, que a aliciaram com doces. Em parte é uma mentira que se conta para assustar as crianças. O pormenor do carro e das roupas mais escuras são dispensáveis à verdade que poucos conseguem destrinçar.

No dia em que Âmbar desapareceu, ela saíra com o irmão mais novo, Jun, para uma das suas tardes de brincadeira. Mas nesse dia tinham decidido não ir atormentar os velhotes e sim praticar um acto mais aventureiro. No mapa da aldeia improvisado com papel de cozinha, traçaram o próximo destino com uma cruz: o Outeiro. É de mencionar que ambos iam munidos de espadas de pau para combaterem os espíritos malignos que pudessem habitar a mansão. Correram pelo caminho arborizado, encobertos por agradáveis sombras de árvores de fruto, e remeteram por um trilho quase invisível por falta de uso. Ele rapidamente os deixou à entrada do solar.

Âmbar e Jun observaram o forte dos inimigos. O pequeno chegou mesmo a pegar numa pedra e atirou-a pela janela de vidro partido. Escutaram somente o barulho do objecto aos trambolhões pelo chão de madeira, mas nada mais.

- Acho que podemos avançar… - sussurrou Âmbar, por cima do chilrear dos pássaros. E o irmão concordou com um breve aceno e expressão séria.

...”

(Continua amanhã! hehe)

O Princípio

Antes de tudo, era somente um pergaminho vazio, até a pena pousar e deixar um trilho de tinta, trilho esse que levará a caminhos explorados ou por explorar, sinuosos ou ondulados como as águas do mar. Que as palavras registadas incorporam vidas reais e viajam além universo. Um universo existente, ou um universo por criar. Fica a cargo da imaginação de quem pinta com palavras essa senda de muitas encruzilhadas.