sábado, 23 de julho de 2011

Estilhaços (Parte IX - final)

Esperou minuto a minuto, até que estes se tornaram horas num passar lento que o descriminava, pois sentia-lhe o dobro do que era. Mas ninguém apareceu. Todavia, a Voz que lhe murmurava ao ouvido, dia após dia, e a quem nunca contara da sua existência, permanecia com ele, sussurrando-lhe ameaças, desejando amedrontá-lo com os males que poderiam ser causados aos que lhe eram queridos, se não saísse de imediato do solar abandonado aos ratos e às aranhas que dele tinham feito o seu próprio palacete. Porém agora não havia voz que lhe incutisse mais medo do que aquele que lhe palpitava nas veias. Se durante tantos anos a Voz o quis impedir de que fosse até ali, deveria existir uma razão importante. Talvez ela própria temesse o que um velho louco poderia fazer, porque o tom aumentava dentro da sua cabeça, um aviso que elevava cada vez mais a voz, desejando roubar-lhe a sanidade.

- Cala-te, não te quero ouvir… - rosnou e, por puro impulso, a espingarda disparou-se ao acaso. A bala atravessou a janela e perdeu-se na noite, o seu voo fazendo companhia aos morcegos e aos mochos.

O estouro sobrepôs-se por um momento aos gritos que lhe vibravam nos ouvidos, no entanto foi um instante fugaz.

- Onde estás? – Exigiu saber, avançando até ao toucador que apresentava uma camada de pó espessa. Contudo, ali estavam os estilhaços, sete ao todo. Mas deveriam ser mais, não deveriam? Âmbar quebrara um deles em pedaços mais pequenos, lembrava-se como se tivesse sido naquele mesmo minuto. Parecia que esses pedaços se tinham reconstituído e voltado a ser um estilhaço uno. Para além disso, não existia um único grão de pó a macular a superfície reflexiva. Talvez houvesse quem os limpasse constantemente, e no entanto pareciam intocados. Não havia marcas de dedos, confirmou com a luz da lanterna. Ali, o pó desaparecia, tal como Âmbar desaparecera. Talvez…

A mão esticou-se para os estilhaços e parou a poucos milímetros deles, hesitando. Se lhes tocasse, era provável que também ele desaparecesse. Mas não era aquela a única forma de saber o que acontecera à irmã? Não desejava levar aquela dúvida para o caixão, no entanto um gesto assim poderia ser puro suicídio.

“Afasta-te, idiota!”, quase guinchou a Voz dentro dos seus ouvidos, fazendo-o estremecer. “Volta para o calor da tua lareira, desaparece daqui!”

Apesar do aviso que as ordens poderiam conter, estas serviram apenas como incitação. Se a Voz não queria, ele deveria fazê-lo com ousadia e desafio. Sem esperar, a mão pousou sobre os sete estilhaços de espelho e Jun desapareceu. Mas deixou rasto.

No exterior do solar, entre as ervas daninhas que minavam os canteiros que outrora teriam bonitas flores, despontaram sete ramos de alecrim que agraciaram a noite com o perfume tão característico. Junto deles ajoelhara-se uma jovem mulher. Pelo menos no seu rosto não havia uma única ruga que o maculasse. No entanto as mãos trémulas, que ela estendeu para as plantas, banhavam-se na velhice. Se a visse, Jun não a identificaria como sendo a bruxa que vira muitos anos atrás, transportando um cadáver ensacado. Esta também transportava um, que abandonara para poder contemplar as flores, de olhos inundados em lágrimas.

- Avisei-te para que não viesses, persegui-te os sonhos e o consciente – soluçou, quase se engasgando com as palavras. – Mas tocaste-lhe, e aquele maldito espelho estilhaçou-te a alma em sete partes para… para… melhor as devorar. Porque não só um estilhaço? – Afagou cada planta, ludibriando-se com a ideia de que ele poderia sentir o carinho que transmitia. – Só toquei num deles e fui feita escrava do desejo por cadáveres de que ele sofre.

O vento soprou e com ele o canto de uma coruja encheu a noite, provindo de uma árvore não muito distante. Os ramos de alecrim dançaram com aquele balanço, lembrando o quão efémeros eram.

- Quis-te são e salvo, longe do perigo, como um dia… como um dia… também me quiseste – confessou, não se importando que as criaturas da noite a escutassem. Seria castigada quando o Ser do Espelho soubesse o que fizera durante tantos anos. – E como nesse dia não te quis ouvir, também tu não me quiseste ouvir hoje, meu irmão.

As lágrimas não cessaram. A mulher que outrora se chamara Âmbar não colheu os alecrins, deixando-os ali para que representassem o nome que um dia fora dado ao Outeiro. Despediu-se uma última vez, pedindo perdão. No final, a culpa fora sua. Todo o desgosto, todo o sofrimento que causara... e acabara assim.

Por fim, subiu até ao quarto, não se importando com o morto ensacado que deixara no jardim e que fora roubado de uma igreja onde esperava ser enterrado. Parou perto do espelho e debruçou-se, incapaz de ver o próprio reflexo. Mas também não o desejava. Estendeu a mão e imitou o irmão, sendo também levada pelo desconhecido que lhe devorou as restantes partes da alma desgastada pelos anos de servidão.

No jardim despontaram outros seis raminhos de alecrim. O sétimo já há muito fora colhido.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VIII)

- Agora é hora de se irem deitar.

Quando as aconchegou na cama, ofereceu um beijo na fronte de cada uma, antes de apagar a luz fraca do candeeiro da única mesa-de-cabeceira presente no quarto. Depois disso, dirigiu-se para os próprios aposentos, rodando a chave e certificando-se que a janela estava bem fechada. Fazia-o sempre, desde aquilo que lhe acontecera em criança, não fosse a bruxa do saco subir até ali. Aproximou-se com passos hesitantes de uma estante não muito alta, onde guardava alguns dos seus livros favoritos. Escolheu um, de entre todos, de capa já antiga. O título, Viagem ao Centro da Terra, facilmente fazia prever que o escritor era Júlio Verne. Encostou-o ao peito e dirigiu-se até à cama, cujo o velho colchão chiou de queixume quando se sentou sobre ele. Ficou naquela posição durante longos segundos, como quem tenta angariar a pouca coragem que perfaz os recantos mais obscuros do espírito.

Por fim, apartou-o de si e abriu-o com cuidado, sem precisar de procurar uma página em particular, pois as folhas de imediato revelaram o que procurava. Os folíolos secos e as pétalas murchas que tinham já perdido um pouco da cor observavam-no, sem olhos.

- Âmbar, prometi-te que um dia tentaria descobrir o que te aconteceu. E, depois de ter contado a tua história às miúdas, sinto que esse dia chegou.

Tirou o ramo de alecrim do interior do livro e colocou-o no bolso do casaco de lã. Esperou mais um hora ou duas, até toda a casa cair em silêncio, e só aí se ergueu da cama. Desceu até à cave onde guardava a espingarda, entre outras coisas, e carregou-a com as balas que escondia dentro de uma caixa fechada a cadeado para os netos não brincarem com o que não deviam. Sabia por experiência própria que a curiosidade dos pequenos por vezes é catastrófica.

Pouco depois saiu de casa, de lanterna na mão, e encaminhou-se para o Outeiro dos Alecrins, ao mesmo tempo que se protegia da brisa fria. Por aqueles lados não existia qualquer candeeiro eléctrico, era um local desabitado que nunca tivera tal privilégio e fora abandonado à escuridão.

A luz varreu mais do que uma vez o interior do edifício, quando o velho Jun voltou a entrar nele ao fim de tantos anos. Nada se moveu. O silêncio que habitava o solar revelava-se mais grave que o do exterior. Mais pesado, tal como se lembrava dele. Não se deteve então naquele piso, dirigindo-se para o superior com passos lentos e pensados. Já não era nenhuma criança e pesava uns bons quilos a mais do que quando tivera oito anos, e por isso não desejava que toda a antiguidade e podridão da casa ruísse.

Apesar do medo que lhe palpitava no peito, Jun deixou a audácia tomar palavra e entrou no quarto onde Âmbar desaparecera. Como da primeira vez encontrava-se vazio, porém demasiado quieto. Os braços das cortinas não se moviam como os vira outrora fazer, o que em muito contrariava o vento da noite.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VII)

"Jun observou a pequena oferenda, com um misto de incredibilidade e aquele mesmo terror que não se esvaneceria. Ela dissera que aquilo era a sua irmã? Aquele frágil pedaço de planta? Mentiras… mentiras e mais mentiras de uma adulta má que também o queria meter dentro do saco, e talvez matá-lo, dando-lhe com uma pedra na cabeça. Recuou para fora do aposento, tropeçando em algo que aparentemente não ali estava e caindo para trás desamparado. Uma das mãos esfolou-se na madeira áspera, recebendo duas farpas, mas a dor foi relegada para segundo plano.

- O que foi, pequenino intrometido? – Perguntou, simulando um tom infantil. – Estamos só a fazer uma troca. Leva-a como recordação, antes que decida comer-te. – Atirou-lhe o ramo para cima. A reacção dele foi imediata, saltando para o lado como se o toque daquela coisa passasse peçonha. Apesar de ele nunca ter percebido o que realmente poderia ser a peçonha. Mas era algo mau que revestia a superfície de muitos animais e plantas, segundo a mãe e a avó.

- És uma bruxa… - sussurrou num gemido aflito, recuando em direcção às escadas, antes de descer por elas. Caiu os últimos degraus, esfolando-se ainda mais. Os olhos cheios de lágrimas procuraram a porta fechada e aquele entrave só aumentou a maré de pânico que parecia subir e inundá-lo.

Uma súbita gargalhada malévola fez estremecer o que restava nos vidros, em modo de ameaça, e a criança não se demorou a abrir a porta, escapando-se para o exterior soalheiro. Precipitou-se pelo caminho, derrapando nele, e chegou à aldeia tão depressa como nunca antes. Mas ainda assim pareceu-lhe ter levado uma eternidade a alcançar a segurança. Quando passou a porta de casa e teve coragem para contar tudo o que acontecera, ninguém quis crer na sua história. Porém, logo a noite cobriu a aldeia sem Âmbar regressar a casa. Não apareceu nesse dia, nem em nenhum.

Quando o rapazinho se fechou no quarto para chorar livremente, um ramo de alecrim pereceu imóvel junto ao soalho atapetado. Viajara consigo durante toda a corrida, possivelmente preso à roupa, sem que ele se apercebesse de como lá fora ter. Tinha a certeza que fugira dele quando a mulher de mãos mirradas o atirara. Com cuidado, apanhou-o do chão, relembrando as palavras que ela lhe dissera. E se fosse mesmo a irmã transformada em planta? Nunca veio a saber, mas guardou-o como recordação e como esperança, não obstante os pesadelos que fomentaria na sua mente.

Daí em diante, aos olhos dos aldeões, Jun tornou-se um rapaz perturbado, que criara toda uma história para fantasiar o rapto da irmã. Mas só ele sabia a verdade. Só ele. E agora é somente um velho que conta histórias aos netos.”

O silêncio vagueou pela sala, enquanto as labaredas dançavam na lareira emitindo estranhas sombras que varriam o redor.

- É verdade, avô Jun? Isso aconteceu mesmo? – Perguntou uma pequena de olhos grandes e cor de safira, num sussurro.

- Quem sabe? – O avô sorriu-lhe de forma amável, passando-lhe as mãos pelo cabelo.

(...)

sábado, 2 de julho de 2011

Estilhaços (Parte VI)

“Estremeceu, rodando a cabeça aos poucos e erguendo os olhos aterrorizados para a nova presença. Cruzou-os com dois orbes intensamente verdes que o miravam com alguma curiosidade. Não era um fantasma, era uma presença até bastante sólida, como aquele encontrão poderia testemunhar.

- O que fazes aqui, pequeno? – Perguntou, arregalando duas sobrancelhas finas. – Isto não é lugar para criancinhas. Devias…

A jovem, porque era claramente uma mulher com pouco mais de vinte e cinco anos, notou a diferença que havia no quarto: os sete novos estilhaços, os resquícios que tinham marcado a ousadia da sua irmã. Passou por ele, arrastando atrás de si um saco enorme que lhe lembrava aqueles onde a mãe punha o lixo, e o que transportava no interior ostentava uma forma peculiar. Familiar. Jun observou-lhe o cabelo negro entrançado, que lhe caía até ao nível da cintura. Por entre os fios de cabelo despontavam ramos de alecrim florido que lhe emprestavam uma aura leve. O perfume que deixara atrás de si porém não era de alecrim. Pairava em si um fedor a podridão.

Viu-a acocorar-se junto aos pedaços de espelho e tocar-lhes com várias unhas compridas e pontiagudas. As mãos reflectiam uma velhice que não estava inscrita no rosto bonito, encarquilhadas pelo tempo. Enquanto isso, abandonara o saco ao seu lado e, quando o fizera, um pé descalço de tom escurecido revelou-se.

- Não estavas aqui sozinho, pois não? – Quis saber, sem o olhar, enquanto reunia cada um dos vidros com ambas as mãos em concha e os levava para cima do toucador. Não escutou resposta, porque Jun sentia que a língua lhe fora roubada. Por um momento pensara que aquilo era um membro da irmã, mas não, Âmbar era bastante mais pequena. Mas o que via não deixava de ser o que revelava ser: um cadáver real.

A mulher mirou-o de soslaio, examinando-o e percebendo facilmente aquele terror mudo. Sorriu. Todavia o trejeito no rosto não era amável. Um dos cantos dos lábios erguia-se, escarnecendo da criança. Endireitou-se e ajeitou as saias do vestido comprido.

- Sabes, é feio entrar na casa dos outros sem ser convidado. Chama-se invasão de propriedade privada. E quem o faz pode ser preso – declarou, levando uma mão ao cabelo e retirando um ramo de alecrim dele, estendendo-o na sua direcção. – Toma a tua irmã.”